sexta-feira, 3 de julho de 2009

"Sobre a Contradição" (CIRNE-LIMA)

“Toda a lógica formal é, portanto, no fundo apenas um sistema altamente sofisticado e tautologias, de dizer o que já foi dito.” (CIRNE-LIMA, 1993, p. 27).


Vive-se hoje em um mundo de incertezas. Isso pode ser verificado em todas as esferas do agir humano. Senão vejamos: na Economia, as previsões e crenças das evoluções das bolsas e da auto-regulação do Mercado explodiram juntamente com a bolha do capital. Na Cultura, vê-se cada vez mais que as tradições e os costumes são muito variadas e não podem ser aceitas de forma universal e intersubjetiva sem estranhamentos. Na religião, as Igrejas Históricas cristãs (que já são bastantes diferentes umas das outras nos dogmas básicos) agora têm dividir fiéis com centenas de milhares de pequenas igrejinhas fundadas diariamente. Além das crenças cristãs há, ainda, as chamadas “filosofias de vida”, tais como o Budismo e as “espiritualidades” ao estilo new age; sem falar na Umbanda (dividida em várias linhas) e no Espiritismo (dividido em várias linhas), do Hinduísmo, do Islamismo, etc, etc.
Vê-se, pois, que além do “Deus está morto” de Nietzsche, ou ainda, além do ateísmo puro, há inúmeros deuses para serem venerados.
Na ciência, também não há consenso e vive-se diariamente em um ambiente de incertezas. E nem é necessário apelar para o anarquismo de Feyerabend, basta-se tão somente reler o falseacionismo de Popper, o falibilismo de Lakatos, passando pelo ceticismo de Kuhn.
Por outros termos, tem-se que as “Ciências duras”, como a Física, que outrora ofereciam mais certezas, está despedaçada, dividida entre Física Clássica newtoniana, Teoria da Relatividade e Física Quântica. A Biologia, um pouco mais unificada também se debate entre atomistas do gene (como Dawkins) e holistas cosmológicos (como Kauffman).
Nas Ciências Humanas, o cenário não é deferente e o desmantelamento da URSS praticamente transformou o marxismo (base sobre a qual se apóiam muitas das humanidades) em algo fora de moda.
A Filosofia, campo do saber que sempre se prestou às especulações e no qual a univocidade nunca foi vista nem querida, também demonstra, mais do que nunca, incerteza própria daquele que não sabe para onde ir, nem o que defender, nem o que concluir.
Na esfera do senso comum o homem comum também não sabe no que acreditar: fim do emprego (total falta de garantia em um futuro profissional promissor, mesmo tendo-se estudado para isso), corrupção na política (que deveria buscar o bem comum do povo), falta de qualidade dos produtos comprados e propagandeados como verdadeiras maravilhas, etc.
Todo esse cenário faz com que poucos, hoje em dia, digam que há uma Lógica (com “l” maiúsculo) e uma Verdade (com “v” maiúsculo). Há contradições tão grandes nas ações e obras humanas que parece não mais ser possível afirmar que algo é assim e que essa é a verdade.
Esse é o contexto por trás do livro “Sobre a Contradição” de Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Nele, o filósofo gaúcho analisa a contradição; postulação que divide até hoje dialéticos e analíticos. Com base em Hegel, Cirne-lima afirma que é justamente a contradição que serve de “motor” à dialética. É por negar-se a si mesmo que o ser desdobra e passa a ser coisa outra.
Cirne-Lima, para deixar a problemática mais clara compara a atitude do pensador dialético ante o pensador analítico; para isso utiliza a alegoria dos dois homenzinhos; um, o dialético, aponta para as contradições que surgem nas coisas; outro, o analítico, resolve-as fazendo delas leis não contraditórias.
Porém, segundo o gaúcho, o principal do problema é a “questão da faticidade ou do ser contingente existente.” (CIRNE-LIMA, 1993, p. 20). Explique-se assim: o fato da existência de uma mesa é totalmente contingente, ou seja, quando contemplo uma mesa, ela realmente existe diante de meus olhos, porém, ela poderia, muito bem, não existir; poderia não ter sido fabricada, poderia não ter sido transportada até meu escritório, etc. Poderia, enfim, não ter vindo a existir de fato. Essa noção gera inúmeros problemas, pois a mesa que vejo diante de meus olhos não pode existir e não existir, no entanto, ela é contingente, e, como se sabe, poderia muito bem não ter existido. Assim, uma coisa que é-pode-não-ser é algo muito estranho para a filosofia analítica:

O ser contingente existente, esta mesa aqui, é ao mesmo tempo “G” e “não-G”. Para salvar o Princípio de Não-Contradição, somos obrigados a introduzir aspectos diversos da mesma coisa, a qual, assim, é a mesma e a outra; é a alteridade da mesmice. O problema foi eliminado da linguagem no âmbito lógico-semântico. Mas qual o preço dessa clareza e racionalidade? O que fizemos? Tiramos a contradição da linguagem e a empurramos para dentro da realidade concreta da coisa individual. A linguagem não é contraditória, mas a coisa o é. Hegel fala da ternura para com as coisas (6, 55) que nos leva, geralmente, a tirar delas a contradição, empurrando-as para a reflexão externa. Aqui e agora, nesse nosso discurso, fizemos o contrário. A ternura para com a linguagem, o amor e à exatidão lógico-semântica nos induziram a eliminar a contradição da linguagem, deslocando-a para dentro da própria realidade das coisas. A controvérsia entre analíticos e dialéticos, a essa altura, nos levou a um novo impasse: para que a linguagem fique livre da contradição, as coisas têm de ser declaradas contraditórias em si mesmas. Mas com isso todo e qualquer falar perde o sentido, perde-se a relação entre o significante e o significado, pois não se diz mais aquilo que realmente é. Desapareceu a relação entre aquilo que é dito e aquilo que de fato é. (CIRNE-LIMA, 1993, p. 25).

Cirne-Lima afirma isso porque, para negar o fato de que algo possa ser e ser contingente (ou seja não ser), é necessário acrescentar outro predicado a essa coisa (no caso a mesa), da seguinte forma:

a – a é F (pode existir)
b – a é G (pode não existir)
(CIRNE-LIMA, 1993,
p. 22).


Ou seja, à mesa foi acrescentado outro predicado, o fato de “poder não existir” ao invés de considerá-la como algo contingente. Em outras palavras a mesa é “F” e “G”, e, ao mesmo tempo “não-G” (não-pode-não-exixtir). Apesar de toda a peripécia feita, segundo Cirne-Lima a contradição ainda existe: “o objeto concreto individual contingente e existente é agora portador da contradição. É ele em si e per si, contraditório. (CIRNE-LIMA, 1993, p. 26).

REFERÊNCIA:

CIRNE-LIMA, Carlos Roberto Velho. Sobre a Contradição. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.


[Continua...]

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